Mais uma vez deixo aqui uma crônica de um dos meus autores/cronistas preferidos: Paulo Mendes Campos. Mais uma vez também, com certeza, existirão aqueles que concordarão e aqueles que não. Aos olhos de Freud e afins ou aos olhos de filósofos e afins, a aceitação pode ser maior, menor ou nula. Mas a verdade é uma só: a vida que vivemos é a vida que melhor conseguimos viver. Se temos como "fraqueza" esta ou aquela particularidade, devemos seguir, tb da melhor maneira, vivendo as nossas vidas com o melhor que conseguirmos.
O resto...é análise para o divã!
* Deparei-me que é o segundo post que coloco aqui com o tema solidão. Freud explica (rs)
O outro, para os interessados, é este aqui:
http://simbolofalicoeocacete.blogspot.com.br/2013/11/solidao.html
* Deparei-me que é o segundo post que coloco aqui com o tema solidão. Freud explica (rs)
O outro, para os interessados, é este aqui:
http://simbolofalicoeocacete.blogspot.com.br/2013/11/solidao.html
Casado e pai.
Mas estava só na sua noite de livros e nicotina. Nem a viuvez antecipada que
põe certo desamparo nos homens solteiros, nem a inquietude contrafeita dos
viúvos: uma solidão muda, que, embora a prazo fixo, sabe a infinda, como as
desolações da alma nas travessias aéreas. Por um momento, a família se
desprendera de sua autoridade de chefe; como se desprendera da aleivosia
pecuniária dos fornecedores, das hesitações na escolha do jantar, das faxinas
furiosas das quartas-feiras, dos horários, das aulas de professores
descontentes. A família descansava na montanha.
Um pai de
família só em seu apartamento se parece mais a um menino filho de família, só,
no apartamento de um amigo. Sem a mulher e as crianças, tudo aquilo que é seu
não tem muita importância nem serventia. Restam-lhe os dois recursos: o do telefone
(um alívio comprovar que os programas lá de fora não valem a pena) e o da
geladeira, com seu tédio glacial, onde uma perna de frango, um pudim de creme,
uma talha de abacaxi, uma folha verdíssima de alface, podem, de quando em
quando, mitigar-lhe a solidão, torná-lo de novo, nesse gesto estampado, um pai
de família igual aos outros. Mas dessa vez bebeu, sem sede, meia xícara de água
gelada, acidulando-a com umas gotas de limão, para contornar qualquer excesso
de simplicidade, e fechou a porta de propósito com estrondo, antes de voltar à
leitura.
Mas o tema da solidão continuava.
O melhor para todo mundo, disse para si mesmo na apressada pausa de um
parágrafo, é não se ter casado; uma vez casado, o melhor é não se descasar
nunca mais. Essa idéia, torta e impublicável, não chegou a fatigá-lo. O mar fez
silêncio enquanto um avião cruzou o bairro. A porta do elevador devolveu mais
alguém ao convívio, amável ou monótono, de seus familiares.
O
homem fechou o livro e foi abrindo aos poucos, como um leque, outros
pensamentos juvenis. Por exemplo, há uma relação civil que é dura e
desconcertante mas perfeitamente inútil: a cautelosa relação existente entre
dois desquitados que acaso ainda se amassem. Impossível que certos desquitados
não continuem se gostando, num segredo cruel, e se desejem com todas as
humilhações do remorso. Haverá os que se amam sempre, antes, durante e depois
das afrontosas formalidades legais do desquite; há os que penam de saudade umas
poucas vezes ou uma só vez presas de repente de um fogo que não consome, dor de
amor no significado popular e pungente das canções radiofônicas.
O
tempo é mais ostensivamente irreversível para eles, os desquitados. As sanções
ditadas pelo sentimento de dignidade ou de ridículo tornam dramáticas essas
vítimas de separações que se filtram nas figuras dos códigos, e conheceram as
delongas vexatórias das salas de espera, os corredores mesquinhos dos
cartórios, a bronquite dos juízes, o pigarro indiscreto dos oficiais de
justiça. Mais que a letra da lei, é essa aparelhagem que os separa e os faz
irremediáveis. Ou quase.
Assim,
o homem só não lia mais, e espaceava nas adivinhações da solidão alheia,
querendo entende os que se vão deitar (tantas vezes já em nova companhia, de
súbito tão estranha e sem sentido) atacados de aguda compaixão e ternura por
antigo companheiro ou companheira. Nem todos, talvez muito poucos, mas sempre
existem casais desquitados que se amam e se vão amar ainda, timidamente,
rudemente, isoladamente, cada um na sua redoma de reserva, ambos a sofrer a
certeza de que cometeram um intolerável engano.
Por
vezes, em noites vagarosas como esta, na hora talvez do grande rush, na
execução automática do gesto de ir para a cidade ou voltar a casa, os
desquitados ficam patéticos, e odeiam a vida, e sentem a tentação amedrontada
de parar. Ou de voltar. Mas se tece claramente contra eles uma trama pública; a
sociedade que os cerca se compraz em oprimí-los com uma vigilância que, de um
momento para outro, pode transformar-se numa ironia irreparável. Não voltará,
não terá bastante valor para voltar, impossível. Ou quase.
Ninguém
ama porque a lei o obrigue a isso, mas por força de um desvario, suave como uma
boa morte. Também não se pára de amar pela força de uma disposição judicial que
afasta o hábito de um corpo do hábito de outro corpo, o aprendizado de uma alma
do aprendizado de outra alma. Duas criaturas, a despeito de tudo, tão humanas e
já poderiam ser agora bem mais pacientes.
Mas
chegava de pensar em desquitados, sonâmbulos judiciais, bilaquianos pássaros
cativos. Apenas, para terminar seu pensamento, lembrou-se de que uma vez, numa
roda viril, um homem dissera com ênfase cômica e inesperada: “Estou convencido
de que a gente se casa só para fugir à solidão.” Um jovem senhor desquitado,
presente a essa conversa boba, sorriu com experiência e sarcasmo, e enganchou
nas consciências a interrogação final: “E você acha isso pouco"?
(Paulo Mendes Campos)
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