7 de mar. de 2014

Sísifo



Estou com a leve impressão que este tópico vai ficar meio longo; não sei se tanto quanto chato ou sem pé nem cabeça, mas é isso que acontece quando resolvemos sair por aí filosofando, querendo descobrir a América, colocar o ovo em pé, descobrir o sexo dos anjos ou a pedra fundamental ou achar o Santo Graal e outras miragens do tipo. Você roda roda e roda...até ficar tonto e se estatelar no chão...para então descobrir que não saiu do lugar.

Tudo isso porque acabei de ler o livro que cito e mostro no tópico "Quadrilha" e aí, ao fechá-lo, fiquei com a nítida sensação de.....fudeu! Algo do tipo "se ficar o bicho pega e se correr o bicho come".

Lá está dito, "claramente", que é mole pro vasco levar uma vida leve, harmoniosa e feliz: é uma receitinha básica como os bolos da vovó!

É "só" esquecer o passado, nunca pensar no futuro e descartar prá lixeira qualquer esperança. Fudeu II

Depois do ovo de Colombo, lembrei-me do Sísifo. Acho que, no fundo, todos nós somos um pouco Sísifo. Até o Chico já dizia que "todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às 6 horas da manhã..."

Ser Sísifo foi o castigo que nos foi imposto por desejarmos tanto a imortalidade (mais abertamente ou de modo velado e disfarçado, travestido em outras posturas da nossa vida) ou, o que dá na mesma, negar a obviedade e certeza absoluta de que somos mortais; nós, nossos amores e tudo mais. Nasceu...já começa a contagem regressiva. Nada foge disso. Para Nietzsche, até a fé deve ser devidamente destruída a marteladas, até virar pó! Fudeu III

Mas, voltando ao sísifo de todos nós, prefiro  apegar-me a Albert Camus e... vê-lo feliz, levando sua pedra montanha acima! Aí aproveito e tiro o CD do Chico e troco pelo do Gil onde ele nos diz que "o melhor lugar do mundo é aqui e agora...!"

Que os sísifos de  todos nós sigam rolando suas pedras e curtindo a vida. Quem sabe consigamos ultrapassar os 70 aninhos, com o pique louco deste "imortal" Mick Jagger que, por mais de quarenta anos já fez de tudo para virar pó (aí ele, com certeza, se cheiraria - rs)....e não virou. Segue colecionando rugas, lucianas gimenez e outras drogas (sorry, Luciana), mas curte tudo adoidado, prontinho prá cair morto, com a vida plenamente vivida e aproveitada. No palco, fazendo aquilo que ele escolheu para fazer em/na sua vida, ele parece um adolescente de vinte e poucos anos! Pecados capitais à parte, é de dar inveja a qualquer um! Torço para que ele morra dormindo, como um passarinho; fez por merecer!

Se não rolarmos as pedras com o pique do Mick...fudeu IV.




*Calma crianças: não precisam sair por aí procurando o primeiro traficante da área ou correr até o bar para beber todas e mais algumas! Estamos só simbolizando e ilustrando! "Hoje é dia de rock, bebê" rs

Mas antes que chegue o fudeu final (como diz o Woody Allen, "não é que eu tenha medo da morte. Só  não queria estar presente no dia que ela chegar"), tentemos (que é sempre o que nos resta; tentar), olhar para o Sísifo com os olhos do Camus. Tentemos beber, sorver, absorver, nos contaminar e enxergar nosso lado sísifo, com os olhos do Camus...

Será que dá?? Senão....

... Si si fudeu, e desce o caixão!

Vou deixar a "visão" do Camus com a amplitude que acho que ela merece. Se isso confirmar que o post ficou longo, cansativo e um exemplo a mais da busca do TODO, encontrando o NADA, desligo também o CD do Gil e fico em silêncio, nada ouvindo, vendo ou falando!



O MITO DE SÍSIFO 


Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em conseqüência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. 


A acreditar em Homero, Sísifo era o mais ajuizado e mais prudente dos mortais. No entanto, segundo outra tradição, tinha tendências para a profissão de bandido. Não vejo nisto a menor contradição. As opiniões diferem sobre os motivos que lhe valeram ser trabalhador inútil dos infernos. Censura-se-lhe, de início, certa leviandade para com os deuses. Revelou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi raptada por Júpiter. O pai espantou-se com esse desaparecimento e queixou-se dele a Sísifo. Este, que estava ao corrente do rapto, propôs a Asopo contar-lhe o que sabia, com a condição de ele dar água à cidadela de Corinto. Aos raios celestes, preferiu a bênção da água. Por tal foi castigado nos infernos. Homero conta-nos também que Sísifo havia acorrentado a Morte. Plutão não pôde suportar o espetáculo do seu império deserto e silencioso. Enviou os deuses da guerra, que soltou a Morte das mãos do seu vencedor. 

Diz-se ainda que, estando Sísifo quase a morrer, quis, imprudentemente, pôr à prova o amor de sua mulher. Ordenou-lhe que lançasse o seu corpo, sem sepultura, para o meio da praça pública. Sísifo encontrou-se nos infernos. E aí, irritado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão licença para voltar à terra e castigar a mulher. Mas, quando viu de novo o rosto deste mundo, sentiu inebriadamente a água e o sol, as pedras quentes e o mar, não quis regressar à sombra infernal. Os chamamentos, as cóleras e os avisos de nada serviram. Ainda viveu muitos anos diante da curva do golfo, do mar resplandecente e dos sorrisos da terra. Mercúrio veio pegar no audacioso pela gola e, roubando-o às alegrias, levou-o à força para os infernos, onde o seu rochedo já estava pronto. 

Já todos compreenderam que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície. 

É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mais igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que regressa com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo. 

Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há estino que não se transceda pelo desprezo. 

Se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra não é demais. Ainda imagino Sísifo voltando para o seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens da terra se apegam de mais à lembrança, quando o chamamento da felicidade se torna demasiado premente, acontece qua a tristeza se ergue no coração do homem: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O imenso infortúnio é pesado demais para se poder carregar. São as nossas noites de Gethsemani. Mas as verdades esmagadoras morrem quando são reconhecidas. Assim, Édipo obedece de início ao destino, sem o saber. A partir do momento em que sabe, a sua tragédia começa. Mas no mesmo instante, cego e deseperado, ele reconhece que o único elo que o prende ao mundo é a mão fresca de uma jovem. Uma frase desmedida ressoa então: "Apesar de tantas provações, a minha idade avançada e a grandeza da minha alma fazem-me achar que tudo está bem." O Édipo de Sófocles, como o Kirilov de Dostoievsky, dá assim a fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga identifica-se com o heroísmo moderno. 

Não descobrimos o absurdo sem nos sentirmos tentados a escrever um manual qualquer da felicidade. "O quê, por caminhos tão estreitos?..." Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que do sentimento do absurdo nasça da felicidade. "Acho que tudo está bem", diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa. Da mesma maneira, quando o homem absurdo contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subitamente entregue ao seu silêncio, erguem-se as mil vozinhas maravilhosas da terra. Chamamentos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não há sol sem sombra e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará. Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo, regressando ao seu rochedo, contempla essa seqüência de ações sem elo que se torna o seu destino, criado por ele, unido sob o olhar da sua memória, e selado em breve pela sua morte. Assim, persuadido da origem bem humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em marcha. O rochedo ainda rola. 

Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

Albert Camus 
Nasceu na Argéilia (Mondovi) 07/11/13 
Morreu na França (Paris) janeiro 1960 
Prêmio Nobel da Literatura em 1957 










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