31 de jan. de 2014

Solidão II

Mais uma vez deixo aqui uma crônica de um dos meus autores/cronistas preferidos: Paulo Mendes Campos. Mais uma vez também, com certeza, existirão aqueles que concordarão e aqueles que não. Aos olhos de Freud e afins ou aos olhos de filósofos e afins, a aceitação pode ser maior, menor ou nula. Mas a verdade é uma só: a vida que vivemos é a vida que melhor conseguimos viver. Se temos como "fraqueza" esta ou aquela particularidade, devemos seguir, tb da melhor maneira, vivendo as nossas vidas com o melhor que conseguirmos.

O resto...é análise para o divã!

* Deparei-me que é o segundo post que coloco aqui com o tema solidão. Freud explica (rs)

O outro, para os interessados, é este aqui: 

http://simbolofalicoeocacete.blogspot.com.br/2013/11/solidao.html




Casado e pai. Mas estava só na sua noite de livros e nicotina. Nem a viuvez antecipada que põe certo desamparo nos homens solteiros, nem a inquietude contrafeita dos viúvos: uma solidão muda, que, embora a prazo fixo, sabe a infinda, como as desolações da alma nas travessias aéreas. Por um momento, a família se desprendera de sua autoridade de chefe; como se desprendera da aleivosia pecuniária dos fornecedores, das hesitações na escolha do jantar, das faxinas furiosas das quartas-feiras, dos horários, das aulas de professores descontentes. A família descansava na montanha.

Um pai de família só em seu apartamento se parece mais a um menino filho de família, só, no apartamento de um amigo. Sem a mulher e as crianças, tudo aquilo que é seu não tem muita importância nem serventia. Restam-lhe os dois recursos: o do telefone (um alívio comprovar que os programas lá de fora não valem a pena) e o da geladeira, com seu tédio glacial, onde uma perna de frango, um pudim de creme, uma talha de abacaxi, uma folha verdíssima de alface, podem, de quando em quando, mitigar-lhe a solidão, torná-lo de novo, nesse gesto estampado, um pai de família igual aos outros. Mas dessa vez bebeu, sem sede, meia xícara de água gelada, acidulando-a com umas gotas de limão, para contornar qualquer excesso de simplicidade, e fechou a porta de propósito com estrondo, antes de voltar à leitura.

Mas o tema da solidão continuava. O melhor para todo mundo, disse para si mesmo na apressada pausa de um parágrafo, é não se ter casado; uma vez casado, o melhor é não se descasar nunca mais. Essa idéia, torta e impublicável, não chegou a fatigá-lo. O mar fez silêncio enquanto um avião cruzou o bairro. A porta do elevador devolveu mais alguém ao convívio, amável ou monótono, de seus familiares.

            O homem fechou o livro e foi abrindo aos poucos, como um leque, outros pensamentos juvenis. Por exemplo, há uma relação civil que é dura e desconcertante mas perfeitamente inútil: a cautelosa relação existente entre dois desquitados que acaso ainda se amassem. Impossível que certos desquitados não continuem se gostando, num segredo cruel, e se desejem com todas as humilhações do remorso. Haverá os que se amam sempre, antes, durante e depois das afrontosas formalidades legais do desquite; há os que penam de saudade umas poucas vezes ou uma só vez presas de repente de um fogo que não consome, dor de amor no significado popular e pungente das canções radiofônicas.

            O tempo é mais ostensivamente irreversível para eles, os desquitados. As sanções ditadas pelo sentimento de dignidade ou de ridículo tornam dramáticas essas vítimas de separações que se filtram nas figuras dos códigos, e conheceram as delongas vexatórias das salas de espera, os corredores mesquinhos dos cartórios, a bronquite dos juízes, o pigarro indiscreto dos oficiais de justiça. Mais que a letra da lei, é essa aparelhagem que os separa e os faz irremediáveis. Ou quase.

            Assim, o homem só não lia mais, e espaceava nas adivinhações da solidão alheia, querendo entende os que se vão deitar (tantas vezes já em nova companhia, de súbito tão estranha e sem sentido) atacados de aguda compaixão e ternura por antigo companheiro ou companheira. Nem todos, talvez muito poucos, mas sempre existem casais desquitados que se amam e se vão amar ainda, timidamente, rudemente, isoladamente, cada um na sua redoma de reserva, ambos a sofrer a certeza de que cometeram um intolerável engano.

            Por vezes, em noites vagarosas como esta, na hora talvez do grande rush, na execução automática do gesto de ir para a cidade ou voltar a casa, os desquitados ficam patéticos, e odeiam a vida, e sentem a tentação amedrontada de parar. Ou de voltar. Mas se tece claramente contra eles uma trama pública; a sociedade que os cerca se compraz em oprimí-los com uma vigilância que, de um momento para outro, pode transformar-se numa ironia irreparável. Não voltará, não terá bastante valor para voltar, impossível. Ou quase.
            Ninguém ama porque a lei o obrigue a isso, mas por força de um desvario, suave como uma boa morte. Também não se pára de amar pela força de uma disposição judicial que afasta o hábito de um corpo do hábito de outro corpo, o aprendizado de uma alma do aprendizado de outra alma. Duas criaturas, a despeito de tudo, tão humanas e já poderiam ser agora bem mais pacientes.

            Mas chegava de pensar em desquitados, sonâmbulos judiciais, bilaquianos pássaros cativos. Apenas, para terminar seu pensamento, lembrou-se de que uma vez, numa roda viril, um homem dissera com ênfase cômica e inesperada: “Estou convencido de que a gente se casa só para fugir à solidão.” Um jovem senhor desquitado, presente a essa conversa boba, sorriu com experiência e sarcasmo, e enganchou nas consciências a interrogação final: “E você acha isso pouco"?



(Paulo Mendes Campos)


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